as verdadeiras tangas
- A menina lembra-se da R.?
- A que está lá mais para norte?
- Essa mesma. Sabe que ela foi a Portugal de férias?
- A menina disse-me, sim.
- Não imagina o que lhe aconteceu...
- Pois não. Mas a menina vai contar-mo, não vai?
- Vou, vou. Ou não quer ouvir?
- Claro que quero. Quando me propus viver consigo devo ter assinado um contrato qualquer com umas letrinhas pequeninas a dizer que tinha de ouvir as suas histórias todas, ou arriscar-me a uma quebra contratual grave com contornos de crise conjugal de nível 8.5 na escala de um Ritcher qualquer das relações...
- Ai, deixe-se de brincadeiras. Quer ouvir a historia da R. ou não?
- Claro que quero. Diga lá.
- Lembra-se da namorada espanhola que ela teve?
- A que morreu?
- Essa mesmo. Meteu-se-lhe na cabeça ir até à aldeia dela, perto de San Sebastian, para ir visitar a campa dela ao cemitério.
- É um pouco tétrico para o meu gosto, mas há pessoas que encontram nisso algum sentido. E depois?
- Depois, foi mesmo e não encontrou campa nenhuma com o nome da outra.
- Enganou-se no cemitério? Na aldeia?
- Não. Andou por lá a indagar e ia tendo um baque surdo com o que descobriu.
- E o que foi?
- Uma das vizinhas da família da rapariga acabou por lhe dizer que ela não tinha morrido e que estava internada num hospital próximo.
- A sério?!?
- Seríssimo. Ia-lhe dando uma coisinha má.
- Calculo... E que fez ela?
- Meteu-se no carro e foi ao tal hospital. Deu a volta à enfermeira que lá estava e conseguiu que a deixasse fazer-lhe uma visita.
- E era mesmo ela? A que morreu?...
- Era. Tetraplégica, ou lá o que é. Diz que a reconheceu pelos olhos, porque está completamente diferente, depois destes anos todos. E que percebeu que a outra também a reconheceu.
- Que história...
- É verdade. Esteve a falar com ela. A outra não lhe respondia, mas diz que lhe vieram as lágrimas aos olhos e tudo. Pediu-lhe desculpa, disse-que que não sabia, que lhe tinham dito que ela tinha morrido.
- Parece uma história de telenovela...
- Pois é. Mas é verdade. Disse-lhe que continuava a gostar muito dela e que tudo teria sido muito diferente se soubesse que ela estava viva. Que continuava a ser o grande amor da vida dela, mas que agora tinha refeito a vida e que provavelmente não voltaria lá. Que se lembraria sempre dela e essas coisas.
- Que coisa... Que história. A família da outra enganou-a durante estes anos todos...
- Pois foi. Foi a forma mais simples de se livrarem da 'namorada' incómoda. E ela nunca pôs isso em questão, depois do acidente de carro que tiveram. É terrível, não é?
- É realmente terrível o que as famílias continuam a poder fazer nestes casos. Mesmo que, na altura, ela se tivesse apercebido de que a namorada estava viva, o mais provável é que a tivessem impedido também de estar com ela.
- Teria sido muito duro também, mas pelo menos ela saberia a verdade e poderia ter escolhido lutar ou não pela relação delas.
- A verdade é sempre melhor, mesmo quando não conseguimos o que queremos. Pelo menos, temos hipóteses mais justas.
- São histórias destas que me apetece contar quando as pessoas dizem que não vão às paradas e às marchas do orgulho porque não estão para palhaçadas. A verdade é que são essas ditas 'palhaçadas' que nos permitem as poucas vitórias legais que já alcançámos.
- É verdade e nunca é demais lembrar isso. Agora chegue-se para cá, que essa história pôs-me o cabelo em pé.
- A mim também.
(Esta história é real e não apenas uma das muitas ficções narradas neste blogue. Passou-se na última semana, entre Lisboa e San Sebastian.)