a longevidade do pudor
- A menina não se importa de chegar aqui um instante?
- Ai… Eu com mil coisas para fazer e a menina sempre a exigir a minha atenção. Olhe que eu não sou elástica…
- Vá lá, é só um momentinho…
- Pronto, vá lá, vá lá!
- Sente-se aqui ao pé de mim. Ouça isto.
- O ‘Feitiço’ do André Sardet? A menina está muito romântica…
- Parabéns, meu amor.
- Para si também, querida. Quantos fazemos?
- Vinte e três anos, três meses, cinco dias e nove horas.
- E eu a julgar que me tinha esquecido outra vez da nossa data…
- Todas as datas são nossas, não acha?
- Acho. Obrigada por mo lembrar tantas vezes.
- Ainda bem que a menina nunca me atira a lamechice à cara.
- Eu gosto de lamechices.
- A minha primeira escolha era um híbrido de o ‘Feitiço’, cantado pela Mafalda Sachetti e pela Joana Solnado, mas não estava disponível no escaparate da secção romântica.
- Isso sim, era mesmo lamechas…
- Estava aqui a lembrar-me daquela amiga da prima T. com quem estivemos no outro dia.
- O que tem?
- Lembra-se de ela ter dito que relações assim como a nossa é que deviam ser mais divulgadas, porque a impressão que as pessoas tinham é que o meio lésbico é muito promíscuo?
- E é promíscuo. Tanto como o hetero.
- Pois é, mas o que ela quis dizer é que fazem falta exemplos como o nosso, de relações com grande longevidade para mostrar às pessoas que isso também é possível e que não somos todas umas doidivanas inconstantes.
- E a menina disse que não, que não somos todas doidivanas e promíscuas, pelo menos não mais do que qualquer hetero.
- Pois disse. Mas esqueci-me de uma coisa muito importante.
- O que foi?
- Imagine que eu ia para a televisão consigo, de mão dada e olhar apaixonado, confessar publicamente o meu amor por si e que todo o tempo que já temos de relação e o que ainda vier não chega para acomodar o amor que sentimos uma pela outra.
- É um cenário aterrador, assim em público.
- Exactamente. Já imaginou? É como se eu lhe escrevesse uma carta, para lhe confessar o que sinto por si e, de repente, ela aparecesse escarrapachada na comunicação social.
- Que horror!
- Pois é… Lá se ia o romantismo todo. E com ele uma parte importantíssima da relação. Há coisas que ficam bem apenas entre duas pessoas que se amam.
- Concordo e volto a concordar.
- Não é só uma questão de longevidade, não acha? Há coisas que são só nossas e que partilhadas se tornam tão promíscuas como se andássemos a saltar de cama em cama. Contar um grande amor é como contar um segredo. Se toda a gente souber, deixa de ser segredo. Se eu contar o meu grande amor por si, retiro-lhe a película protectora e deixo-o vulnerável, permeável a toda a gente. E eu não quero isso.
- E tem toda a razão em não querer.
- Hoje em dia ninguém valoriza os segredos ou as relações. Toda a gente tem alguém ‘de confiança’ a quem acha que pode contar o segredo que lhe confiaram e essa pessoa, por sua vez, também confia noutra e por aí adiante. Não há segredo que resista à confiança.
- Isso sim, é promíscuo.
- Claro que é. E uma relação que se expõe abre as portas a todo o tipo de interferência. Quantas relações conhecemos que sucumbiram ao diz-que-disse e às intervenções de ‘pessoas de confiança’?
- Não me lembre coisas tristes…
- Pois é. Por isso, quem quiser, que use a cabecinha e o senso comum para descobrir que nós também temos relações de grande duração e que a promiscuidade não é um exclusivo nosso.
- Também acho. E agora, a seguir ao ‘Feitiço’, o que é que vem?
- Hum… Use a cabecinha e o senso comum. E algumas partes do corpo, se não se importa…