sofazando
- A menina não se importa de me dizer quando é que vai sair desse malfadado sofá?
- Porquê? Estou a estorvar?
- A minha paciência, e muito. Não tem vergonha na cara? Nem sequer responde às mensagens que lhe deixam?
- A vergonha nunca foi o meu forte, como sabe. Já a preguiça, é outra conversa.
- Não percebo como pode estar com preguiça à tanto tempo.
- Estou a fazer cera.
- Isso vejo eu!
- Não me percebeu. Sabe de onde vem a expressão?
- Já me disse: das abelhas nas colmeias.
- Ora aí está. Estou a fazer cera, como as abelhas que parecem não estar a fazer nada mas na verdade estão a preparar a colmeia para um novo enxame.
- No seu caso espero que seja um enxame de ideias.
- Acertou. Mas elas não surgem do nada, sabe? Há imensa coisa a acontecer e é preciso ligar as coisas para tentar compreender a forma como elas nos afectam.
- E o que é que está a afectá-la desta vez?
- Nada em especial. Mas há algumas coisas que me passam pela cabeça.
- Dê-me um exemplo.
- Lembra-se da ópera que fomos ver ao Coliseu?
- «La Traviata»?
- Essa mesmo. A minha preferida, embora o espectáculo tenha sido um terror.
- Sim, foi bastante mau. Mas a que propósito vem isso?
- É o exemplo que me pediu de algumas coisas em que vou pensando aqui no sofá.
- Estou a segui-la…
- A ópera é assim como a história da Violeta, da Traviata. O amor dela está condenado à partida. Está comprometida e quando conhece Alfredo, o que lhe retira qualquer hipótese à partida. Depois, quando já há um relacionamento entre eles e parece que alguma coisa pode acontecer, desmaia. Um aviso do que pode ser o seu fim e o desfecho da relação.
- Uma bela tragédia, à boa maneira da ópera.
- Isso mesmo. Mas não fica por aí. À medida que o amor deles cresce, sucedem-se as intrigas e os mal-entendidos, até que ela opta para se afastar, sacrificando o seu amor por Alfredo. Quando este finalmente toma uma decisão, é tarde demais. Ela morre. Mas ele está salvo, pelo amor dela.
- Um amor impossível. Muito romântico.
- Aí está: romântico é igual a amor impossível. Faz ideia de quanto essa noção, tão enraizada dentro de nós, afecta as relações entre as pessoas? Afinal, o romântico são os amores impossíveis…
- Ai, nem tanto ao mar, nem tanto à terra…
- É verdade. Mas a ópera é uma sublimação da realidade, ou do que achamos que pode ser uma realidade plausível. Agora pense em todos os amores impossíveis cantados nas óperas. A que conclusão chega?
- Sei lá! Não sou eu que estou no sofá, a pensar nessas coisas todas… Debite lá a sua conclusão.
- A conclusão é que a ópera é mesmo um espelho da realidade. Dos amores hetero. Tanta desgraça e tanto desencontro só mesmo numa relação hetero. Se as heroínas fossem duas mulheres a história era outra.
- Como por exemplo?
- Entravam as duas para um convento e aí passariam o resto das suas vidas, em reclusão, para o resto das suas vidas, mas com imenso tempo para sentir o seu amor.
- Isso e o armário são uma e a mesma versão, não acha?
- Bem… No armário há menos espaço, por isso calculo que a versão conventual garanta horizontes mais latos, até porque…
- Até porque nessa versão sempre havia um Don Juan de saias, é isso?
- É uma interpretação livre, mas também muito perto da realidade.
- Salte já desse sofá que eu tenho uma ou duas coisas para lhe mostrar sobre a realidade…